Como foi nossa visita à Casa Mário de Andrade

A máquina Mariana, prima da original Manuela - Foto: Gloria Cavaggioni, Da Janela

Nosso desvario começou na escadaria, sentido oposto à Casa Mário de Andrade, em busca de um restaurante. O bairro Barra Funda, com casinhas geminadas e coloridas, ruas pacatas, começava a nos mandar para outro tempo, outra São Paulo.

Pensamos em achar uma típica padoca paulistana, mas acabamos comendo um baião de dois, em A Baianeira, um simpático restaurante conduzido por Manuelle Ferraz, mineira de Almenara, no Vale do Jequitinhonha. Na decoração, as lindas estatuetas de barro características do Vale. Senti de novo o arrependimento de não ter trazido uma de Diamantina. Mas fiquei feliz há poucos dias, quando Gloria encontrou uma galinha de cerâmica que há anos trouxemos de lá e a instalamos no centro da mesa da sala de jantar. Quando voltar ao Vale, trarei uma estatueta, sem dúvida.

Restaurante A Baianeira, com lembranças de Minas e Bahia em São Paulo - Foto: Gloria Cavaggioni, Da Janela
Restaurante A Baianeira, com lembranças de Minas e Bahia em São Paulo – Foto: Gloria Cavaggioni, Da Janela

Queríamos comer qualquer coisa para não ficar com fome durante o passeio pela Casa Mário de Andrade, mas o almoço foi bem mais que isso. Além da delícia da comida, e o ambiente muito agradável, as associações do acaso vão tornando a viagem sempre mais interessante. A Baianeira tem uma unidade no MASP, onde estive há poucos meses com Bruno, meu filho, para ver a exposição Mário de Andrade: duas vidas. Ah, pode dizer que são só coincidências, mas parece sempre que alguém travesso nos leva pra cá e pra lá, dando pistas pra gente seguir um certo rumo…

Aí, quando fiz uma pausa neste texto, peguei um livro do Arnaldo Antunes e leio mais esta:

O imprevisto é a prova mais linda da ordem natural das coisas. E eu vou aprendendo a acionar meus ímãs no instante em que as coincidências se armam”. Minha cabeça voa e vou deixando…

Pois bem, fomos finalmente à Casa do autor de Paulicéia Desvairada, felizes com o almoço e com a reabertura do espaço dedicado ao escritor, poeta, músico modernista.

Meus pés enterrem na rua Aurora,
No Paissandu deixem meu sexo,
Na Lopes Chaves a cabeça
Esqueçam.
(Lira Paulistana)

Estávamos na Lopes Chaves, 546, na Barra Funda em São Paulo. Ali ainda está a cabeça de Mário, tem até sua máscara mortuária (em bronze?) na entrada da sala, ao lado de um painel com o poema citado acima. Mário não foi esquecido. O que não queria era virar nome de rua, como Lopes Chaves. Era o nome de sua rua e Mário não sabia quem era. Agora, bem pertinho da Casa passa a rua Mário de Andrade, não esqueça:

Mamãe, me dá essa lua,
ser esquecido e ignorado
como esses nomes da rua.
(Lira Paulistana)

A Casa Mário de Andrade ficou fechada por um ano e meio e estávamos ansiosos por conhecê-la, principalmente depois de nossa expedição literária sobre Fernando Sabino. É que ambos foram amigos e trocaram inúmeras cartas, apesar da diferença de idade. Fernando enviou para Mário seu primeiro livro (Os grilos não cantam mais) quando tinha apenas 17 anos. O consagrado modernista já contava 48.

Mário morou ali com sua mãe, Maria Luiza Leite Moraes, de 1921 a 1945. Na verdade, o complexo reúne três casas compradas pela mãe quando ficou viúva, uma para ela e duas para os dois filhos. O interior de duas casas foi praticamente todo refeito, mas a casa de Mário e sua mãe ainda conserva muito da arquitetura original.

Gloria observa Mário, ou o contrário? - Foto: Wanderley Garcia, Da Janela
Gloria observa Mário, ou o contrário? – Foto: Wanderley Garcia, Da Janela

No pavimento inferior do sobrado, exposições com fotos e objetos de Mário, uma sala de música com o piano que o modernista tocava e ensinava e também sua biblioteca. Junto aos livros, ele dava um recado: não emprestava os livros, mas deixava a casa aberta a quem os quisesse ler ali mesmo.

Brinquei um bocado com uma foto do escritor e um óculos como o que usava à sua frente. Gloria costuma dizer que em nossas viagens, vemos o mundo a partir das lentes dos escritores. Coloquei discretamente o seu olhar nos olhos do autor de Macunaíma. Se ficou bom, não sei, mas foi divertido fazer.

O olhar de Gloria pela lente de Mário de Andrade - Foto: Wanderley Garcia, Da Janela
O olhar de Gloria pela lente de Mário de Andrade – Foto: Wanderley Garcia, Da Janela

No pavimento superior, visitamos a remontagem do quarto e estúdio de Mário. Uma curiosidade sobre o escritor: ele recebia os amigos no estúdio e não no piso térreo, como era a tradição que isolava a área íntima das casas. Mário gostava de partilhar artes e cultura.

Numa das salas, tivemos o encontro com Mariana, uma máquina de escrever Remington, prima idêntica à Manuela que foi do escritor. Por que esses nomes? Mário quis dar um tom íntimo ao objeto e homenageou seu melhor amigo, o poeta Manuel Bandeira. Manuela se perdeu no tempo, mas Mariana veio nos contar essa história.

Imersão na origem de Macunaíma - Foto: Wanderley Garcia, Da Janela
Imersão na origem de Macunaíma – Foto: Wanderley Garcia, Da Janela

Pegamos os últimos dias da exposição temporária A origem de Macunaíma, uma experiência imersiva em realidade virtual, além de painéis fotográficos. Produzida pelo Studio Kwo, com curadoria de Francisco Almendra, a mostra nos levou primeiro ao estúdio onde Mário nos recebeu com sorriso nos lábios. Depois vamos ao monte Roraima, conhecer as lendas que inspiraram o escritor a criar sua obra-prima. Eu e Gloria nos divertimos e torcemos para que agora o material fique disponível ao público de outra forma.

Se ficássemos mais um pouco talvez nos convidassem a sair. A casa já estava fechando e curtimos fazer fotos em frente, inclusive com ajuda de um simpático segurança. Gloria ganhou um ramo de manjericão pra formar muda. Me lembrou as mudas que ganhou da nespereira de Erico Verissimo em Cruz Alta.

Dali partimos para o trânsito de São Paulo à espera de mais uma arte do acaso.

Visitação à Casa Mário de Andrade

A visitação à Casa Mário de Andrade é gratuita, de terça a domingo, das 10h às 18h (domingos e feriados fecha das 12h às 13h). Fica na rua Lopes Chaves, 546, Barra Funda, São Paulo e a entrada é gratuita. Não tem estacionamento no local, mas conseguimos parar numa rua próxima com alguma facilidade. A estação de metrô mais próxima (600m) é a Marechal Deodoro (confirme as informações com a Casa antes de visitar).

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