Quando criança e até mesmo já adulta e com filhas eu gostava muito de ir à casa de uma tia, irmã de meu pai. Ela era aquela tia que ainda que eu já fosse bem crescidinha continuava tricotando meias de lã pra mim, fazendo sachês para as minhas gavetas. Um mimo estava sempre prontinho à minha espera quando a visitava. Claro que os presentes eram bem vindos, no entanto o bom mesmo era a sensação de acolhimento que ela transmitia e que sua casa refletia.
A casa, pequena e bastante humilde, resguardava uma época que não existia mais. Os móveis polidos com esmero, um velho sofá cheinho de almofadas bordadas, vasinhos de porcelana e toalhinhas de crochê se misturavam às fotografias dos netos, lembranças de casamentos e batizados. Na cozinha, sempre limpa e organizada, a mesa de madeira escura ocupava quase todo o espaço.
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Nessa mesa minha tia desenhou moldes, cortou tecidos e criou vestidos durante anos, quando seu trabalho como costureira sustentou a família. À sua volta seu marido e filhos receberam seu carinho traduzido em alimento preparado com capricho, assim como seus irmãos, sobrinhos, netos e quem mais ali chegasse. Todos eram recebidos com o sorriso terno e a conversa doce daquela senhora.
Em Cruz Alta também fomos recebidos amavelmente na casa de uma tia. A tia de Erico Verissimo. Bem diferente da casa da irmã de meu pai, essa é grande, rodeada de um jardim bem cuidado e alegre e transpira uma certa prosperidade, sem ostentação. Apesar da diferença gritante na aparência, os dois lugares têm em comum a sensação de terem parado no tempo.
Sendo bem clara, a casa da tia de Erico lembra muito um museu. É decorada com uma profusão de quadros, objetos e móveis, em grande parte do início do século 20, quando a casa foi construída. Um piano, lindos espelhos e o retrato do primeiro casal que lá morou não poderiam faltar, e nos arrebataram. As janelas deixavam a luminosidade do dia quente entrar nas salas escuras conferindo ao ambiente uma aura de mistério a ser elucidado.
Não nos fizemos de rogados e, cheios de ânimo, Wanderley e eu percorremos cada cantinho, prestando atenção a detalhes bonitos, curtindo a atmosfera da época em que Erico usufruía daquele espaço. Foi gostoso ler a dedicatória feita pelo escritor num dos volumes de O Tempo e O Vento a seus tios, nos sentimos testemunhas da relação afetuosa entre eles.
Dr. João Raymundo e Dona Iracema construíram a casa por volta de 1922, quando o jovem Erico ainda trabalhava em Cruz Alta e seu desejo de ser um escritor era suplantado pela necessidade de ajudar a mãe no sustento da família. Dona Iracema era a irmã de D. Bega, a mãe de Erico, que costumava dormir algumas noites na casa dos tios. Por que? Nem ele mesmo se lembrava quando escreveu seu livro de memórias.
O quarto que usava tinha uma só janela em formato de olho de boi. Essa janela fica na frente da casa, à esquerda da porta principal, visível logo que se entra no jardim e se olha a construção de frente. Nesse quarto o autor viveu uma experiência marcante: foi a primeira vez que viu alguém morrer. A maneira como ele narra tal passagem em seu livro de memórias – Solo de Clarineta, Vol I, é poética. As circunstâncias o obrigam a passar a noite com um homem desconhecido à beira da morte. Lado a lado com o moribundo as horas transcorrem povoadas de questionamentos e reflexões de um jovem que espera sentir-se realizado e feliz com a vida futura. Diversos são os momentos dessa noite insone. No final dela, tocado com o sofrimento do desconhecido, Erico fica de mãos dadas com ele até que morra.
Motivados pela possibilidade de conhecer o cenário de uma das histórias de vida do romancista que havíamos lido, chegamos curiosos a essa bela casa em Cruz Alta. Neolange e seu marido (que é neto de João Raymundo e Iracema) são os atuais proprietários do imóvel. A maneira como conservam tantas memórias de uma família é impressionante. Não só preservam inúmeros objetos, mantém vivas as histórias de seus filhos ilustres, como Erico. Neolange discorre com prazer sobre acontecimentos e reminiscências do século passado como se fossem curiosidades de sua rotina atual.
Conservo em nossa casa xícaras que foram da minha avó, pratos usados cotidianamente quando eu era criança e recontar causos sobre meus ancestrais me traz contentamento. Mas tanto o Wanderley quanto eu gostamos de ter à nossa volta potes de cerâmica, bonequinhos, quadros e outros objetos que lembram bons momentos vividos por nós. A maioria foi trazida de viagens e evocam pessoas, lugares ou vivências queridas.
Como as marcas em mim desenhadas na casa da minha tia, os objetos que guardo e fazem parte do meu dia a dia normalmente carregam com eles a sensação do afeto que recebi na época. Muito de vez em quando olhar pra eles traz uma certa nostalgia, a lembrança do calor ausente. Uma saudade de lugares subjetivos que não ocupo mais. Talvez Erico quando voltasse à casa dos tios ocasionalmente também se sentisse um tantinho melancólico, quem sabe? Porém Wanderley e eu, avizinhados das recordações daquela família, deixamos a casa ansiosos para descobrir mais histórias e criar novas memórias.
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