Nesta entrevista fictícia, Gloria Cavaggioni e Wanderley Garcia falam de suas andanças por Minas Gerais em busca de Fernando Sabino, relembram aventuras e refletem sobre a mineiridade. O texto foi publicado originalmente na revista Urro! Contragolpe Cultural.
A tela do celular reluzia em cima da mesa. O “rec” ativado. A entrevista ia começar quando o garçom trouxe a cerveja e dois copos. Gloria não pediu nada.
Wanderley encheu os copos, colarinho generoso. Agora vamos?
Eles podiam contar a história do começo, como surgiram as expedições, o encantamento juvenil com a literatura de Fernando Sabino… Mas estavam ali, no coração de Belo Horizonte, vivendo Minas Gerais. O ar inspirava uma resposta subjetiva, que buscasse a essência. Gloria arriscou:
– Paixão?
Wanderley tomou um gole. Colocou o copo pela metade sobre a mesa.
– Eu nasci e cresci em Minas, mas na divisa com São Paulo, voltado mais à Mogiana Paulista que ao próprio Sul de Minas. Mas sou mineiro, me reconheço mineiro mesmo que a todo momento em contato com São Paulo. Desbravar Minas é me descobrir, entender quem sou, por que sou, como sou.
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– Penso nos passeios e viagens que fizemos juntos, eu e Wands, e fico com a pulga atrás da orelha: o que Minas tem que tanto me seduz? Conhecer novos lugares, pessoas e costumes é algo de que gosto nem sei dizer desde quando e que ganhou novo vigor quando ficamos juntos. Ele é um companheiro de viagens incrível, mesmo quando entramos em barcas furadas. Nunca fiz as contas, mas acredito que temos um bocado de quilômetros percorridos em nossas andanças por cachoeiras, montanhas e cidades, nos divertindo com os perrengues e as boas surpresas no caminho.
Todo canto que visitamos nos deram de presente um quê de frescor e motivação pro dia a dia, mas Minas Gerais tem sobre mim um efeito diferente de todos os outros estados que conheci.
Tudo bem, há dez anos um mineirinho muito do matreiro vem me enfeitiçando e talvez meu amor por ele sugestione a impressão que Minas me causa. Porém desconfio que haja algum outro encantamento independente do vínculo afetivo.
– Pra mim, conhecer cada lugar de Minas é como desvendar a história de um antepassado.
– Fernando Sabino foi um antepassado?
– Com certeza! Foi ele, vivendo no Rio, que me mostrou que há algo especial no ser mineiro, que não o abandona nunca, mesmo quando viaja o mundo e passa a maior parte da vida fora do estado. A literatura de Fernando Sabino é como um guia para quem resolve desbravar Minas. Apesar de sua narrativa estar situada geograficamente no Rio de Janeiro, ou Londres, ou Nova Iorque, é de Minas que ele fala, é da montanha mineira que ele lança seu olhar para o mundo.
O garçom chegou com mais uma cerveja. Pediram uma porção de mandioca frita, Gloria quis um refrigerante zero e a entrevista continuou.
– Encontraram alguém especial nesta aventura por Minas?
Wanderley não hesitou:
– Geraldo Viramundo. Demos com ele em vários momentos. Mas talvez o mais emblemático foi quando estava tombando uma máquina de lavar roupa no meio da rua, no final de uma pirambeira que estávamos descendo de carro quando chegamos a Rio Acima, a cidade onde ele nasceu. Não tivemos dúvida, era o próprio Viramundo nos recepcionando a seu modo, rompendo com qualquer lógica.
– Então o encontro com o Viramundo aconteceu em Rio Acima?
Gloria tomava um gole do refrigerante, mas respondeu prontamente:
– Não o primeiro, mas um dos mais esperados por nós, acredito mesmo que mais ainda por mim. Rio Acima faz parte da história do Geraldo menino, que corre ao lado do trem com a molecada, coleciona bolinhas de gude, vai à escola. Mas nele, a faceta que mais cativa é a que o diferencia dos 12 irmãos e o que o torna mais tarde um Viramundo. Geraldo olha para o mundo com uma pureza que não cabe em nossa realidade e talvez por isso mesmo tenha sido considerado aluado, matusquela, um maluquinho.
Ele alimenta uma ligação incomum com o rio das Velhas, que passa por dentro de sua cidade. Minha porção piracicabana estava louca para conhecer o tal rio e reconhecer nele um pouco do meu rio, o Piracicaba. Por isso tanta vontade de chegar em Rio Acima, encontrar o Geraldo menino, o rio das Velhas. Quem sabe o rio do menino pudesse dar algumas respostas para os dilemas dessa cinquentona?
Viramundo não se fez de rogado, atendeu a nossos anseios com a timidez alegre que lhe é peculiar. Olhando para Rio Acima pelas lentes de Geraldo encontramos Fernando Sabino, religiosidade festiva, cachoeira no centro da cidade, estação de trem enfeitada com flores e fitas, a poesia da reunião de três gerações de mulheres ao sol, rio com águas que correm contra a correnteza, trilhos e ruínas que sugerem um tanto de nostalgia e um feijão tropeiro inesquecível.
Estavam na Rua da Bahia, no Maletta. O gelado da cerveja e da Coca combinava com o calor de Belo Horizonte. Em frente havia uma igreja.
– Não é igreja, é o Museu da Moda, advertiu o jornalista. Já foi sede do Conselho Deliberativo e da Câmara Municipal. Aqui é conhecido como Castelinho da Rua da Bahia.
Wanderley continuou olhando o prédio.
– Mas parece uma igreja…
– Talvez isso seja uma das coisas que me encantem tanto aqui: tudo parece possível em Minas. Vivendo com o Wands há muito percebi que a lógica mineira pode ser um tanto controversa e no jeito mineiro de ser cabe Museu da Moda com cara de igreja, relação pra lá de amistosa entre presidiários e a comunidade em Tiradentes, cachorros “de rua” bem-vindos em qualquer padaria, pousada ou restaurante (Catas Altas além de ser um destino convidativo para o turismo nos surpreendeu com o projeto dos cachorros comunitários).
A abertura para o inusitado, a combinação harmoniosa entre opostos – como na pamonha doce recheada com queijo fresco e a sensação de que mesmo as frustrações vão terminar em coisas boas fazem das cidades mineiras um lugar bom de se estar. Atento, você pode perceber isso nas menores coisas.
Estávamos na Praça da Liberdade depois de um dia exaustivo, apesar de muito bom. Tínhamos acordado cedo, participado da gravação de uma entrevista importante para nós durante horas e produzido alguns vídeos curtos para projetos do Da Janela. Passava das cinco da tarde e não tínhamos comido nada desde o café da manhã. Combinamos de nos encontrar com a Raquel, a assessora de imprensa da Secretaria de Cultura do estado de Minas, no Grupo Afonso Pena – a escola em que Fernando Sabino estudou quando menino e que aparece nas histórias do romance O menino no espelho. Não dava tempo de comer nadica, teríamos que contar sobre nossas andanças literárias com a barriga roncando mesmo.
Fomos a pé, a escola fica perto da praça. O tempo começou a virar: céu escuro, vento forte. Chegamos antes da Raquel e logo começou uma tempestade daquelas. Não tínhamos onde nos abrigar. Avistamos um ponto de ônibus, mas já estava apinhado de gente debaixo da pequena cobertura. Sugeri que procurássemos uma lanchonete ou algo do tipo, assim estaríamos protegidos da chuva e poderíamos finalmente comer alguma coisa.
Corremos em direção à praça e no quarteirão seguinte encontramos algo que nos pareceu um boteco, do outro lado da avenida. Entramos encharcados, com frio e famintos. Nos sentamos em banquinhos em frente ao balcão resignados a aplacar nossa fome com qualquer coisa comestível. O lugar era bastante simples, não parecia promissor em termos de quitutes. Pois foi lá que comemos um dos melhores pães de queijo com café que já experimentamos. O cansaço, a fome, as roupas encharcadas e o desencontro com a Raquel por causa da tempestade poderiam ser ingredientes para uma história ruim, porém chegamos ao fim desse capítulo felizes e nos sentindo acolhidos. Ah, a Raquel apareceu por lá e no fim das contas produziu um texto muito bacana sobre o Da Janela.
– E veja, a gente se hospedou num hotel antigo aqui na Rua da Bahia, aquele ali embaixo, a um quarteirão daqui. Da sacada do nosso quarto a gente vê as estátuas dos escritores Drummond e Pedro Nava. Parecem conversar tranquilamente. Dá uma sensação gostosa ver aquela conversa interminável, como uma viagem no tempo, ou melhor uma viagem fora do tempo, pois o tempo é abolido. Quando reservamos o hotel, nem pensamos nas estátuas, mas o acaso nos traz estas surpresas boas. E colecionamos um punhado de acasos que nos proporcionaram viagens muito mais interessantes e ricas.
Numa das vindas a Minas, passamos por Oliveira para passear e conhecer a cidade. Ficamos curiosos: que escritor havia nascido ali? Um mês depois conhecemos em Tiradentes o escritor Olavo Romano, nascido em Oliveira, e que foi muito simpático com a gente. Duas semanas depois ele morreu. Foi uma notícia triste, mas ficamos felizes em ter a sorte de conhecê-lo e visitar sua cidade natal.
Outra obra do acaso, no Rio de Janeiro, no final da expedição sobre Fernando Sabino, nos hospedamos num hotel que ficava no mesmo quarteirão onde o escritor morou boa parte da vida. Não sabíamos disso quando fizemos a reserva. Da sacada a gente via o prédio do Fernando. Quase dava pra escutá-lo tocando bateria. Foi um encontro promovido pelo acaso, um encontro não marcado que nos fez muito bem. Em nossas viagens, deixamos muito espaço para o que está por vir e normalmente somos presenteados com boas surpresas.
A porção de mandioca estava no fim e mais uma cerveja chegou à mesa. Ao lado, jovens ruidosos conversavam animados. Iam acabar atrapalhando a gravação. Mas o casal e o jornalista não se importavam. Seguiram adiante.
– Neste percurso que fizeram em mais de duas semanas por Minas, conseguem responder à pergunta-paráfrase: o que é que o mineiro tem?
Wanderley dá uma risada, olha para Gloria.
– Ela é que pode responder.
– Eita, o mineiro é vc… Pra mim mais que o dom de emendar as palavras, de comer letras, de desconversar, de chegar de mansinho e de contar causos improváveis o encanto do mineiro vem de algo subjetivo. Um jeito de ser, de transformar coisas simples em prazer que ainda não consegui decifrar. Parece que o mineiro traz as montanhas de sua terra, o pão de queijo com café, as jantas das festas de Reis dentro dele. E o apreço pela liberdade, isso encontrei em todos os mineiros que conheci.
Mais um gole, as palavras molhadas saem com mais facilidade que no início da conversa.
– O mineiro tem é saudade.
– De que?
– Saudade. Saudade da Minas que deixou pra trás quando foi pra São Paulo, Rio de Janeiro. Saudade da Minas que ficou no tempo. Saudade da casa cheia de parentes e amigos. Saudade da mesa farta, com panelas enormes, doces e quitandas. Saudade da roça. Saudade da cidade pequena que cresceu. E como ele não tem mais nada disso, ele refaz, reconstrói, e oferece de volta a quem estiver ao seu lado. Acho que é por isso que Minas é tão bom. Porque o mineiro refaz a Minas ideal, desejada, sonhada, imaginada o tempo todo. O real de Minas fica muito mais fantástico e fabuloso com a Minas que está dentro de cada mineiro.
O jornalista tocou na tela do celular. Parou a gravação. Na mesa ao lado chegava uma porção de linguiça acebolada. O volume do tráfego já tinha diminuído, mas ainda era intenso. A conta paga, fez uma última pergunta:
– Vão subir a Bahia?
– Não, nem descer a Floresta como Rômulo Paes. Vamos descer a Bahia e lá da sacada vamos olhar Goiás onde Nava e Drummond continuam a conversar. Lá não existe mais tempo e Minas sempre é.
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