Quando foi que estivemos na Belo Horizonte de Fernando Sabino? Nos anos 20 das aventuras, anos 30 da angústia, 1970 da saudade, 2000 da despedida?
Acredito que em todos eles. E também nos anos 2020 da homenagem que fizemos ao centenário do escritor, revivendo nós mesmos suas pegadas na capital mineira.
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Gloria e eu gostamos muito de BH. Dimais da conta, como eu costumava dizer quando era menos mineiro porque morava em Minas. Explico minha aparente contradição: Fernando brincava que os mineiros que saíram talvez sejam mais mineiros que os que ficaram.
Com os olhos novidadeiros de Sabino, a capital ficou diferente. Se não mais bonita, com certeza mais familiar e nostálgica. Os prédios antigos misturados aos novos fizeram o passado de Sabino presente em nossa expedição literária. Os diferentes tempos que encontramos nas nossas andanças estão registrados na arquitetura da capital, como nos antigos palacetes neoclássicos da Praça da Liberdade, desafiados pelo pós-moderno Rainha da Sucata, sob o olhar oblíquo das curvas de Niemeyer presentes no prédio que leva seu nome e na Biblioteca Estadual.
Saiba mais sobre a Praça da Liberdade e Fernando Sabino.
Assim, convido o leitor a fazer conosco esse passeio no tempo e espaço guiado pelo batuque dos dedos do escritor na antiga máquina de escrever e, depois, no moderno computador. Duas crônicas escritas por ele são fundamentais: Belo Horizonte de meu tempo (1), publicada em 1972, e BH – Ontem, hoje e sempre (2), de 2001.
O Menino no Espelho
Viajamos primeiro aos anos 1920, para a casa da Rua Gonçalves Dias, número 1458, onde encontramos um travesso menino Fernando que conversava consigo mesmo diante do espelho. Era uma das primeiras casas construídas no entorno da Praça da Liberdade, quase na esquina com a avenida João Pinheiro. No grande quintal o menino protegia a galinha Fernanda da faca afiada da cozinheira Alzira. Nabacinha! Nabacinha! Valia tudo para enganar Alzira e proteger a pobre e penosa Fernanda. No lugar da casa (e de várias outras), hoje está o prédio de quatro andares da Escola de Design da Universidade Estadual de Minas Gerais (UEMG). Entramos nele. Pisamos no solo da sala, dos quartos ou no quintal onde o menino brincava com as formigas?
Na avenida João Pinheiro o detetive Odnanref desvendava os segredos de uma cidade que mudava devagar rumo à metrópole. Procuramos a casa abandonada que não deve mais existir, porém, algumas outras vão surgindo. O grupo escolar Afonso Pena ainda está lá, agora é uma escola estadual. Em seus pisos ladrilhados correm novos fernandos sabinos, hélios pellegrinos e também guimarãesinhos rosas.
O Encontro Marcado
Nos encontramos com a pesquisadora Cristina Souza no mesmo local onde Fernando Sabino se hospedou quando visitou BH três anos antes de sua morte. O bar foi demolido, o hotel já fechou, mas o prédio enorme continua lá. No térreo, lanchonetes e algumas lojinhas preservam o movimento de um lugar que já foi local de encontro dos intelectuais boêmios de BH.
Bar do Ponto. Havia aqui um abrigo de bondes com uma venda em cada canto, onde se barganhavam figurinhas de balas holandesas. (1)
Ali perto (perto de verdade e não de mineiro) está o viaduto Santa Tereza, ligação entre o Centro e o bairro Floresta, famoso por seus arcos de concreto, sobre os trilhos do trem. Nos arcos Carlos Drummond subia quando voltava para casa. Os amigos Mauro, Hugo e Eduardo (O Encontro Marcado) também se aventuraram por ali. Fernando também subiu?
Continuemos na Rua da Bahia, como se fôssemos à Floresta, a vida é esta: subir Bahia e descer Floresta. Mas para que irmos à Praça da Estação, se ninguém vai chegar pelo Rápido? (1)
Subimos a Bahia no sentido oposto, mas só uma quadra. Viramos na Goiás, onde antes ficavam os jornais em que Fernando trabalhava com outros nomes sagrados e consagrados da literatura e da imprensa mineiras. No encalço dele, topamos com Carlos Drummond de Andrade de papo animado com Pedro Nava. As estátuas dos amigos imortalizaram a esquina do jornalismo e da boemia. Sobre eles, Sabino escreveu duas lindas crônicas: Amor de Passarinho (As melhores crônicas de Fernando Sabino) e O escritor na rua da Glória (Gente II).
Mais adiante alcançamos o prédio da faculdade de direito da UFMG. O mais antigo, onde Fernando estudou, foi demolido. Sabino não terminou o curso, casou-se e se mudou para o Rio de Janeiro. Foi tabelião, jornalista, cronista, escritor, editor, cineasta… Tudo, menos advogado.
De volta à Praça da Liberdade, as conversas dos estudantes substituíram o footing de quase um século atrás. As peripécias e angústias puxadas nos anos 1930 com os amigos da vida inteira, Paulo Mendes Campos, Hélio Pellegrino e Otto Lara Resende, voaram na imaginação do Fernando homem feito e vieram para as páginas de O Encontro Marcado.
E a Praça da Liberdade – magnífica surpresa: impecavelmente recuperada, em todo o esplendor da minha lembrança. Vou direto ao banco onde nós, os quatro amigos de uma eterna juventude, tínhamos encontro marcado noite adentro para puxar angústia. O coreto em frente ao lago, os jardins ainda mais belos… (2).
Quem leu o Encontro Marcado precisa conhecer a Praça. Quem não leu, precisa ler.
Voltamos à Rua da Bahia, mas agora do outro lado, em direção à Savassi. Encontramos a piscina onde Fernando nadava, no Minas Tênis Clube. Foi campeão e recordista de nado costas. Para nossa sorte, no momento em que passamos pelo clube, acontecia uma competição. Ficamos na arquibancada, assistindo às provas, as famílias excitadas com o desempenho de garotos e garotas. Fernando pairava entre nós.
Dali, rápida visita ao Minas Tênis Clube, das emocionantes competições de natação. Frondosas árvores impedem que a piscina seja integralmente vista da varanda aqui de cima, e ainda bem: eu correria o risco de perder o campeonato. (2)
Passeando pelo tempo, seguimos por outras cidades mineiras e pelo Rio de Janeiro (saiba mais da expedição Caminhos Fernando Sabino). A Praça da Liberdade guarda ainda outros locais bastante significativos (veja aqui).
No primeiro dia de nossa expedição, a caminho do ponto zero, o local onde Sabino nasceu, encontramos uma bela e grande igreja. Atraídos, entramos para conhecê-la e descobrimos se tratar da Basílica de Nossa Senhora de Lourdes, onde Fernando foi batizado e fez a primeira comunhão. Fazia parte do começo de tudo. No dia seguinte, de frente àquela mesma igreja, nos despedimos de Cristina, após horas de caminhada pela rota do escritor.
Fernando era católico, religioso. Escreveu até um livro sobre o humor de Jesus Cristo (Com a Graça de Deus, 1995). No Rio de Janeiro, visitamos a Igreja da Ressureição, que ele frequentava em Ipanema e onde foi celebrada a sua missa de 7º dia em 2004.
Três anos antes de sua partida, quando caminhava pela Rua da Bahia e se viu diante da igreja dos tempos de menino, Fernando não teve dúvidas e deixou uma prece para a capital de todos os mineiros.
Entro para uma rezinha maneira, pedindo a Deus que abençoe esta moderna capital de Minas. (2).