Viajar…

Gloria e Wanderley no carro para viajar - Foto: Da Janela

Quando criança não gostava de viajar. Viagem era sinônimo de horas no banco de trás do carro entre minha avó e meus irmãos. Minha avó amenizava a chatice do Fabio, o mais velho, tentava nos entreter pro tempo passar mais depressa, mas o danado se distraía mesmo era me atormentando. Na época éramos três irmãos, Daniel era bem pequenininho ainda, quase nem ocupava espaço no carro e o Ivan ainda não tinha nascido. Resultado: eu era a única vítima disponível usada como passatempo do Fabio.

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Normalmente se viajávamos era para passar as férias na casa de praia dos meus tios no Guarujá. Meu tio, cunhado da minha mãe, parecia estar sempre bem humorado. Alagoano, seu sorriso ficava mais luminoso na praia. Ainda sinto algo muito bom me lembrando da gente no mar, pendurados nele pras ondas não nos derrubarem. E ainda tinha meus cinco primos, três já moços que eu considerava descolados e meio que cultuava e os dois mais novos, mais ou menos da minha idade, companheiros de confusões.

Gostava muito de tudo que aprontávamos na casa – desfile de modas, circo, apresentações teatrais, banho de esguicho, do jantar com aquele bando em volta da mesa… mas a praia era um verdadeiro suplício para uma menina magrela e branquela como eu, mesmo com um tio superbacana pra nos salvar das ondas.

Filtro solar era algo que não existia por aqui – eram os anos 70… Mesmo ficando a maior parte do tempo de camiseta e boné debaixo do guarda-sol, já no fim do primeiro dia boto cor-de-rosa seria uma maneira carinhosa de se referir a mim, o que não acontecia. Meu irmão não perdia a chance de me azucrinar, incentivado pelas risadas dos meus primos às custas da minha cor e magrelice, que não tinha como esconder sendo obrigada a usar maiô. Não sei dizer o que era pior, me sentir feia e inadequada ou o ardido da queimadura do sol. Não, meus pais não eram negligentes, sempre me senti acolhida em casa e mesmo o Fabio me amava (se bem que do jeito dele). O que conto aqui é o que ficou guardado em mim, um recorte longe de ser o todo, talvez em cores mais intensas que o real. Quem sabe?

Passados mais de 40 anos viajar é um dos meus melhores prazeres. Uso e abuso do protetor solar, estou de bem com meu corpo (mesmo desejando voltar a ser magrelinha) e encontrei o espaço que gosto de ocupar. Já moça, visitei lugares de belezas diversas e impressionantes, experimentei comidas que nem imaginava existirem, fiz amizades gostosas. E viajar ganhou um outro sentido.

Há dois anos fomos para o Rio de Janeiro, eu, minhas duas filhas (que são adultas e não moram mais comigo) e uma sobrinha adolescente. Já tinha ido com o Wanderley em 2013 e depois disso algumas vezes com a Flora, minha caçula. Gostei demais de passear pela Cinelândia, Lapa, Santa Thereza, perscrutar os mistérios guardados nos lindos prédios antigos. Em 2021, com as meninas reunidas ficamos por Copacabana, curtindo a praia de dia e os botecos à noite.

Fizemos longas caminhadas tagarelando sem parar, as meninas levaram zilhões de caldos brincando no mar rolando até a areia num festival de pernas e braços, emboladas como crianças, cantamos ao som do violão da Juju (minha filha mais velha) e demos risada até ficar com as bochechas doloridas (Pietra, minha sobrinha é a rainha dos foras e na produção de “pérolas”).

Desde que o Wanderley e eu começamos a escrever nossa história juntos, conhecer lugares, pessoas e costumes renderam alguns dos melhores capítulos. Cada viagem ou passeio vivido traz invariavelmente novas expressões, gestos, comidas, músicas que são ajuntadas ao nosso modo de ser cotidiano. Nem sempre o previsto dá certo e no fim das contas os incidentes tornam-se divertimento.

Chuva forte já embalou nossa preguiça e namoro assim como trouxe episódios cômicos. Em Ilhabela ficamos cercados, empoleirados numa cama com nossas roupas e mantimentos enquanto muita água vertia das paredes deixando o quarto completamente alagado (apelidamos o quarto de Fontana). No Vale do Ribeira acordamos com o colchão inflável flutuando, era nosso primeiro acampamento juntos. Fazia um frio danado e nossas roupas e cobertores ficaram encharcados. Rimos da nossa habilidade em montar barracas até hoje.

Viajar abastece nosso estoque de boas histórias, aquelas que são incorporadas e nos trazem a mesma alegria vivida na ocasião quando relembradas. E os perrengues podem ser um tempero a mais, isso é uma das qualidades que mais gosto nas nossas andanças. Até minha ranzinzisse que às vezes tenta participar da festa vira piada. Na estrada o improvável pode ser opção, o comum conforto e o inusitado maravilha. Talvez seja por isso que ela nos atraia tanto. Dizem que existe algo chamado equilíbrio, ainda não tive o prazer de conhecê-lo, mas acredito que toda essa leveza e abertura para o extraordinário nos aproxime dele.

No ano passado Wands e eu planejávamos férias no Pará e Manaus. Depois de uma noite insone dele embarcamos para o Rio Grande do Sul em busca de referências a Erico Verissimo na primeira expedição de um novo projeto de trabalho. Agora vamos para Minas Gerais e Rio de Janeiro, dessa vez procurando os rastros de Fernando Sabino. Uma empreitada como essa demanda planejamento em diversas frentes, organização, investimento de tempo, energia e dinheiro. Temos o compromisso de captar material capaz de rechear crônicas como essa, a produção de um livro, alguns programetes em vídeo, postagens em redes sociais e tomara outras possibilidades que surgirem na volta.

Sentindo essa responsabilidade, meu lado metódico resolveu assumir o controle total e o que era pra ser expectativa de coisa boa se tornou peso e apreensão. Para minha sorte além de artesanato e amizades trouxemos de viagens anteriores um bom estoque de um gás que, semelhante ao que o hélio faz nos balões, garante que nossa cabeça flutue.

A neura que habita em mim tem elaborado listas mentais intermináveis, tentando prever todas as necessidades do projeto. Mas estou confiante de que não vai faltar na nossa mala a ternura da minha avó, a cantoria na praia com as meninas, o bom humor de dois patetas alagados numa barraca. E ainda vai sobrar espaço pro imprevisível e extraordinário.

 

Crônica publicada originalmente em 4 de julho de 2023 em campinas.com.br.

 

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