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Se essa rua fosse minha

Dia de brincadeiras no Portal da Chapada em Alto Paraíso de Goiás - Foto: Acervo pessoal de Gloria Cavaggioni, da Janela

Wands e eu temos lido bastante Rubem Alves. Vem novidade boa por aí… Como Rubem foi também educador, ler alguns de seus textos me leva de volta à Chapada dos Veadeiros, quando, há 20 anos, lecionei em um colégio de freiras em Alto Paraíso de Goiás.

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No primeiro ano que trabalhei na escola, as outras quatro professoras eram freiras. Eu, nem católica sou. O que nunca foi problema nem para mim nem para minhas colegas irmãs. Pude vislumbrar uma pontinha do que é a vida religiosa, tão diferente da minha realidade. A congregação a que pertenciam me pareceu bastante conservadora, pelo menos no vestuário. Por mais calor que fizesse nunca enxerguei sequer um pedacinho do braço de alguma das irmãs, estavam sempre com o hábito de mangas compridas. Só uma vez vi, rapidamente, a irmã Ester sem o véu, graças a um vento travesso que o levou para longe.

Minhas calças jeans viviam em harmonia com os longos trajes religiosos. O que nos diferenciava mesmo era a cultura. Cada uma vinha de uma parte do país, tínhamos histórias e costumes diferentes, o que eu achava ótimo. A diferença cultural enriquecia também minha convivência com os alunos. Sou do interior, mas Piracicaba é uma cidade média do interior paulista, bastante diferente de uma cidade pequena de Goiás.

Alto Paraíso é famosa pela beleza natural e atmosfera mística que possui. É realmente um lugar maravilhoso, cheinho de lindas paisagens e cachoeiras (mesmo tendo passeado muito durante os três anos que morei lá, não conheci todas). Segundo dados mais recentes do IBGE, o município tem hoje 10.306 habitantes. Entre 2004 e 2006, quando tive o privilégio de fazer parte de sua população, éramos pouco mais de 6 mil.

Gloria com suas filhas Juliana e Flora na Chapada dos Veadeiros - Foto: Acervo pessoal de Gloria Cavaggioni, da Janela
Gloria com suas filhas Juliana e Flora na Chapada dos Veadeiros – Foto: Acervo pessoal de Gloria Cavaggioni, da Janela

Ouvia sempre que metade dos moradores eram nativos e a outra metade eram os chegantes, pessoas vindas de diferentes estados. A sala de aula da segunda série (hoje equivalente ao terceiro ano) refletia bem esse panorama: muitos de meus alunos eram cariocas ou gaúchos. De paulista, só a professora mesmo.

Eram crianças de oito anos na época, agora são adultos de quase 30… Ainda assim permanecem meninos na minha memória. Lembro bem de todos, dos nomes, dos rostinhos, das preferências e dificuldades. Especialmente de um.

Pedro poderia ser chamado de terrível. Não tinha parada e, pasmem, chegou a ter os pés amarrados à cadeira por uma antiga professora. Apesar de, ou justamente por colocar minha paciência e criatividade constantemente à prova, eu tinha um xodó todo especial por ele. Era inteligente, serelepe e, depois de conquistado, extremamente afetuoso. À sua maneira…

No fundo da sala ficava um filtro de barro e uma bandeja com nossas canecas. Assim não precisávamos sair da sala para beber água sempre que queríamos. Pedro gostava de sentar no centro da fileira da frente. Todas as vezes que se levantava para beber água ia distribuindo tapas na testa dos colegas que encontrava em seu trajeto até o filtro e voltava para seu lugar oferecendo tabefes na parte de trás da cabeça de cada um. Fazia isso com a maior naturalidade, com ar maroto, mas não maldoso. Era mais uma brincadeira do que uma agressão. Tanto que os agraciados com sua atenção normalmente nem reclamavam, no máximo expressavam sua indignação com uma careta ou um bufo.

Sala de aula, quando Gloria se aventurou como professora em Alto Paraíso de Goiás - Foto: Acervo pessoal de Gloria Cavaggioni, da Janela
Sala de aula, quando Gloria se aventurou como professora em Alto Paraíso de Goiás – Foto: Acervo pessoal de Gloria Cavaggioni, da Janela

Descobri que só duas crianças na sala já tinham feito trabalho com argila, que não era vendida na cidade. Então trouxe de uma das minhas idas à Brasília (cidade grande mais próxima) um bom tanto dela para que moldassem o barro da maneira que quisessem. Juntamos as carteiras formando uma mesona comum e a forramos com jornal. Nesse dia Isabela e João Victor me auxiliaram na distribuição de uma porção generosa de argila para cada aluno. O combinado era esperar que todos tivessem a sua parte para, então, colocarem a mão na massa, o que levou no máximo dois minutos. Foi tempo suficiente para que Pedro gastasse sua parcela, atirando pelotas de argila nos colegas. Depois veio pedir mais com aquele olhar de gato do Shrek, que sabia fazer tão bem.

Um dia conversávamos sobre memória e cultura, era aula de história. Falávamos de como os costumes mudam com o tempo e fomos lembrando objetos e jeitos de fazer comuns no tempo de seus avós que agora eram diferentes. Assim foram citados os ferros de passar roupa, pesados e aquecidos com brasas, as cartolas, espartilhos e peças de vestuário, o preparo de comidas agora facilitado por eletrodomésticos, os meios de comunicação e transporte e por aí afora. Todos empolgados com antes era isso, agora é aquilo, quando Pedro muito sério disse:

  • Os peitos das mulheres antes eram de carne, hoje são de silicone.

Ele era o terror e a diversão da turma. Adorava futebol e, como os outros alunos, sofria e reclamava pela falta de bola para jogarem no recreio. Irmã Albertina, a diretora, não liberava o material de educação física para a molecada jogar no campinho de areia todos os dias. Mas em sua defesa digo que se esforçava para entretê-los no intervalo, batendo corda e organizando jogos. Isso quando não resolvia estourar pipoca para todos. Era gostoso ver a meninada alvoroçada e feliz.

Uma disputa entre as classes fazia parte da festa junina: a melhor dança apresentada ganhava um prêmio em dinheiro. As professoras se empenhavam e os alunos (incentivados pela premiação) participavam entusiasmados, mas sempre o primeiro ano ganhava. Talvez por serem os mais novinhos caíam nas graças do júri, composto pelos patrocinadores da festa.

Em 2004 a história foi outra. Apostamos numa quadrilha bem tradicional, com tudo a que tínhamos direito: balancês, tours, túnel, caracol e grande baile. Durante os ensaios Pedro fazia caras e bocas, rebolava, passava rasteira, e o caminho da roça era repleto de tropeços e reclamações. Mas na noite da festa cada um deu o seu melhor e a coreografia saiu limpinha (todos bem afinados, formações exatas). Não há como negar que, por ter sido bailarina, preparar a turma foi mais fácil para mim. Meu olhar era outro também, tivemos alguma vantagem, admito. Além da parte técnica, digamos assim, trabalhamos bastante a intenção a ser colocada em cada movimento e o prazer da dança. Ganhamos o prêmio.

Com o dinheiro em mãos foi fácil decidir como usá-lo. Nem precisamos fazer uma lista de sugestões a serem votadas. A decisão foi unânime: compramos uma bola que passou a ser guardada no armário da sala e usávamos para algumas atividades só nossas. Mas durante o recreio todos que quisessem jogar se revezavam no campinho de areia. Com o resto do dinheiro compramos lanche para um passeio no Portal da Chapada, um dos pontos turísticos de Alto Paraíso com trilhas, cachoeira e parquinho. Consegui com a prefeitura o transporte e com o proprietário do Portal nossa entrada gratuita e passamos uma tarde nadando e, claro, jogando bola.

Pensando nos dias com essa turminha sinto saudade. Era desgastante, exigia bastante de mim, mas muito compensador. Irmã Albertina tinha uma maneira de lidar com as crianças muito diferente da minha. Era uma senhora com mais ou menos o dobro da minha idade e dizia coisas que seriam absurdas na boca de qualquer outra pessoa, como: “esse menino é passado na burrice”. Dizia com tanta naturalidade que ninguém estranhava. Era a professora do primeiro ano, inclusive da minha filha caçula, a Flora. Dirigia o colégio e a perua Kombi que pegava e levava alguns dos alunos. Sua noção de pedagogia e educação divergia totalmente da minha. Como diretora poderia intervir, porém me dava liberdade para fazer da maneira que eu considerasse melhor com a minha turma.

Atividades e brincadeiras que fugiam do rigor das demais aulas - Foto: Acervo pessoal de Gloria Cavaggioni, da Janela
Atividades e brincadeiras que fugiam do rigor das demais aulas – Foto: Acervo pessoal de Gloria Cavaggioni, da Janela

Assim, cantávamos músicas de Milton Nascimento na aula de ensino religioso, comíamos Bis para comemorar um desafio transposto (normalmente assuntos matemáticos), celebrávamos a Páscoa com lanche comunitário. Procurava passar mais tempo possível em ambiente aberto e tornar interessante o conteúdo a ser discutido, mas era exigente em relação a compromissos e tarefas. Acredito que gostassem de mim, assim como eu gostava deles. Nunca ganhei uma maçã, mas era comum voltar pra casa com jacas, ovos caipiras, cajus, mangas, seriguelas e cajás. Boa parte dos alunos morava em sítios ou fazendas.

Por um bom tempo guardei a infinidade de desenhos, cartões e mimos que ganhei deles. De volta a Piracicaba, morei um tempo em um apartamento pequeno, sem espaço para guardar lembranças e relíquias. Minha filha Juju acomodou várias caixas em seu porão. Mal sabíamos que boa parte da minha tralha se decomporia por causa da umidade e das traças.

O que era matéria se foi, ficaram as recordações. Um dos presentes mais ternos que recebi dos meus alunos foi o Pedro que deu, respondendo à proposta de uma atividade. Conversávamos sobre poesia, e a brincadeira era pensar em paráfrases de quadrinhas conhecidas. Foram para casa com a tarefa de criarem um versinho seu, inspirados em algum já existente. No dia seguinte nos sentamos no chão do pátio para conferir o resultado da lição de casa. Em roda, Pedro na minha frente, no espaço entre minhas pernas cruzadas e meu torso, como costumávamos fazer nas aulas de leitura. Apareceram paródias engraçadas e quando ele foi ler seu verso todos esperavam alguma bobagem. Ele leu:

“Se essa rua, se essa rua fosse minha
eu andava nela, eu andava nela sem parar.
Até pisava nas pedrinhas de brilhantes
só pra pertinho da minha professora ficar.”

 

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