Wanderley atualizou o texto do seu perfil no site do Da janela. São poucas frases, mas soube ser muito doce dizendo ser apaixonado por mim no finalzinho. Ele não é do tipo passional, é mineiro, deliciosamente mineiro. Também quis refazer o meu perfil (a bem da verdade foi o Wands que escreveu o atual quando elaborou o site), estou matutando desde ontem e não consigo pensar em nada que possa ficar bacana.
Não quero parecer pretensiosa, vaidosa ou autocentrada, ainda assim seria bom criar uma aura de inteligência ou perspicácia… Quem sabe um toque bem humorado? No fim, qualquer tentativa de me mostrar interessante parece mesmo ridícula e meu perfil continua lá, intocado.
O simples refazer de um perfil pode ser bastante terapêutico, principalmente se você tem a tendência para o desvario. Olho pra mim: uma coroa até que bem conservada, que adora os netos, as filhas, o companheiro, a bicharada que a rodeia enquanto batuca o teclado do notebook. Se sente bem na antiga chácara dos pais em que vive agora e tenta inutilmente deixar de atacar com fúria devastadora qualquer coisa comestível que vê pela frente… O que de intrigante pode existir nisso?
Penso em como posso me definir. Ao ligar o computador apareceu na tela uma figura do Egito. Quando menina queria ser arqueóloga, hoje sonho em ter dinheiro para consertar a instalação elétrica da lavanderia. Quem sou eu, afinal? Até agora a resposta mais apropriada me veio acessando uma playlist no Spotify com um amontoado de músicas sem similaridade alguma, a não ser terem me marcado em algum trecho do caminho: sou uma miscelânia.
Embarcar em um novo projeto de trabalho sacudiu bem minha vida. Desde que topei ser cúmplice do Wanderley em nossas expedições literárias e no desafio de escrever sobre elas venho tentando organizar a avalanche de pensamentos e sensações que me invade, seja durante as viagens, seja enquanto lemos ou pesquisamos um autor, um livro, carta, foto ou canção e nos perdemos em longas conversas sobre as descobertas. Esse trabalho de buscar indícios de escritores e suas obras bota mais lenha na fogueira da balbúrdia que me consome.
Claro que não sou a única, acredito que todos, de uma forma ou de outra, tenham uma mixórdia pra chamar de sua. A questão é como lidar com a minha. Já tentei ordenar, conter, explicar, ignorar… ela continua lá, incontrolável. O máximo que consigo é apaziguá-la por um tempinho. Há muito encontrei a fórmula: na adolescência, quando me sentia eufórica, inquieta, irremediavelmente feliz, dolorida, atormentada, exuberante e solitária, tudo ao mesmo tempo, me fechava no quarto do meu irmão mais velho (o toca-discos ficava lá) e ouvia Chico Buarque no volume mais alto possível. Não que o Chico me trouxesse de volta à razão, pelo contrário, mas eu me sentia pelo menos acompanhada. Alguém além de mim se perguntava “o que será que me dá, que é feito estar doente d’uma folia?” [O Que Será (À Flor da Pele)]
Música, literatura, dança, cinema nunca elucidaram “o que será que me dá”, mas são até hoje parceiros extraordinários em meus desatinos. Rainer Maria Rilke, o poeta austríaco, em seu lindo livro Cartas a um jovem poeta fala da “infinita solidão das obras de arte” e de como nas questões mais profundas e relevantes estamos “indizivelmente sozinhos”. Não, não é um texto deprimente, pelo contrário, mostra a beleza, a força e as possibilidades que a solidão guarda. Ao contrário do que eu poderia esperar (por muito tempo temi a solidão), tomar consciência de que somos sós foi libertador e alegre. Isso não significa que não possamos compartilhar, seja o que for, mas tira o peso de que é imperativo nos enquadrar ao comum, que é errado nutrir um universo particular.
Tentei explicar meu jeito de ser, entender os porquês. Esbarrei no medo, outro grande companheiro. Medo de não corresponder às expectativas, de falhar, de falar bobagem, de não ser boa o suficiente… medo de me colocar. Sempre atribuí o mérito de me fazer essa pessoa insegura ao perfeccionismo de meu pai. É tão confortável colocar a culpa pelas minhas limitações em sua atitude distante, negativa e permanentemente insatisfeita em relação aos filhos! Para ele nada era digno de elogio, qualquer coisa poderia ter sido feita com mais capricho. Hoje percebo que ele nos deu o seu melhor. Lembro de suas mãos nodosas, um tanto encarangadas pela artrose, mas ainda habilidosas e produtivas e aceito sua contribuição. Ele me ensinou o prazer do trabalho, a organização, o planejamento, a dedicação e persistência. E a importância de não ser tão cri cri quanto ele. Eu tento…
Me esforço realmente para ser mais leve. Fazer força para ter leveza! Podem rir, não me ofendo. Na batalha para um cotidiano mais prazeroso, voltam à cena músicas, livros, filmes e bailados. Se bem que fico na dúvida. Me tornam uma pessoa mais feliz ou mais fora do tempo? Talvez mais contente justamente por escapar do tempo. De novo me lembro da voz do Chico, desta vez em sua canção Paratodos: “Contra fel, moléstia, crime use Dorival Caymmi, Vá de Jackson do Pandeiro.”
Desabafos e confissões feitas já posso criar a descrição do meu perfil: Já foi filha, hoje é mãe e avó. Comilona, passeia por universos inventados enquanto cria o seu. Se sabe só, mas se sente acompanhada quando se identifica com autores, personagens, criações e principalmente quando dança descalça com seu par preferido na sala de casa.
Ah… Ainda não decifrou o que será “que nem dez mandamentos vão conciliar, nem todos os unguentos vão aliviar”. Então tenta desfrutar disso, mesmo sem distinguir exatamente do que se trata.
Gloria, você escreve lindamente! A tua sinceridade sobre si mesma, e tudo que a faz ser quem é, indo de nobres aspirações à preocupações meramente práticas, de investigações culturais ao apetite culinária, da ânsia de viajar ao apego ao sitio familiar, faz que posso me identificar com você, não somente nessas características particulares, mas na tua simples humanidade, ou seja, na intensa alegria e dor de ser. Beijos!
Muito obrigada, Virginia! É gratificante demais saber que impressões e sentimentos que trago comigo nos aproximam. Beijo!