41 horas nas estradas do Rio Grande do Sul

Estrada no Rio Grande do Sul

As estradas nos atraem. Desde nossa primeira viagem juntos, Wanderley e eu vivemos momentos de muita alegria e prazer em diferentes caminhos. A primeira vez que pegamos o carro rumo a outra cidade foi algo bem despretensioso e rápido: fomos de Piracicaba a São Pedro. Na época as oportunidades para mudar de ares juntos eram raras. Ele trabalhava em Campinas e Piracicaba de segunda a sexta, eu em Piracicaba de terça a domingo… Quando surgiu um feriado em Campinas numa segunda-feira não tivemos dúvida, fugimos pra uma cidade próxima em que pudéssemos ir a uma cachoeira, fazer uma trilha, curtir a companhia um do outro sem compromissos e horários, mesmo que por pouco tempo.

Foi nessa curta brincadeira que pegamos a primeira estrada de terra juntos e a lembrança que tenho desse dia é de uma divertida liberdade. Wanderley dirigindo, eu me deixando levar, os dois escutando Working On The Highway, do Bruce Springsteen, bem alto como adolescentes. Sim, como numa cena clichê de viagens em filmes, mas inteiramente autêntica pra nós no momento.

Estrada no Rio Grande do SulTalvez seja essa sensação de me deixar levar, de estar solta, de não saber o que vem pela frente que me dê tanto prazer em estar numa estrada. A companhia do Wanderley, que é doidinho por algo novo e um companheiro de viagem incomparável, potencializa esse entusiasmo. O engraçado, que talvez Freud explique, é que essa abertura toda para o imprevisível passa longe da minha maneira metódica de me colocar no mundo… Mas somos seres contraditórios mesmo, né?

Velhos trajetos conhecidos e um bocado de outros inéditos têm alimentado nossa história. Não poderia ser diferente em nosso “Caminhos Erico Verissimo”. Logo de cara, o impensado deu seus sinais. Estávamos empolgados começando a parte da expedição pelo interior gaúcho em busca das pegadas do autor. Depois de 3 dias intensos deixamos Porto Alegre com o Wanderley dirigindo o Renegade alugado. O plano era revezarmos a direção se ele cansasse – tínhamos cerca de 5h até Bagé. Passando por uma ponte bem bonita na saída da cidade, Wanderley me pediu que fizesse umas fotos com o celular dele (a câmera é muito melhor que a do meu). Afobada não conseguia desbloquear o aparelho e quando finalmente fiz as fotos não fiquei satisfeita com o resultado, a parte mais bonita do cenário tinha ficado pra trás.

Pronto, fiquei brava, disse que detestava usar o celular dele porque era diferente do meu e não estava acostumada, que não fazia fotos boas com ele. Era o meu lado rabugento falando… Propus que trocássemos de lugar: eu ia dirigindo e ele ficava livre pra fazer as imagens que quisesse. Assim percorremos a maior parte do nosso percurso pelo Rio Grande do Sul e foi bom demais. Minha cricrizisse é fugaz, pra sorte do Wanderley que convive ocasionalmente com ela, e não ousou mais atrapalhar.

Estrada no Rio Grande do Sul
A “morada da Teiniaguá”, entre Bagé e Alegrete

Nos 9 dias que tivemos pela frente descobrindo os encantamentos do interior do Rio Grande do Sul e de Erico, vivemos momentos realmente marcantes no caminho entre uma cidade e outra. Passamos pela Ilha das Flores – objeto daquele curta dirigido por Jorge Furtado, vimos céus, flores e árvores que satisfaziam nossa procura por beleza ao mesmo tempo que provocavam nosso desejo de descobrir mais. Pontes, rios, arredores de cidades, gentes e beiras de estrada povoaram as 41 horas passadas dentro do carro.

Até a morada da Teiniaguá nós avistamos. Indo de Bagé para Alegrete, graças a uma dica do Neimar que nos recebeu na cidade cenográfica de Santa Fé, pudemos perscrutar o belo visual dos campos de Rosário em que vive a princesa moura transformada em bruxa, vinda da Espanha para o Rio Grande do Sul, segundo uma tradicional lenda gaúcha. Em O Tempo e o Vento, Erico Verissimo resgata esse mito – um dos personagens da trilogia, o médico alemão Carl Winter, enxerga em Luzia Cambará a Teiniaguá.

Passeando entre paisagens e lendas criamos uma dinâmica que funcionou super bem. Durante as viagens enquanto eu dirigia o Wanderley organizava o material coletado em cada lugar visitado, quando possível postava parte do conteúdo produzido nas redes sociais (na nossa rota praticamente não havia sinal de internet fora do perímetro urbano) e, minha parte preferida: lia trechos dos livros de Erico Verissimo para mim. Quando ele dirigia eu lia pra ele.

Estrada no Rio Grande do Sul
Surpresa boa: trecho de terra a caminho de São Borja

Uns 40 dias antes, quando me envolvi na inspiração do Wanderley de sair em busca de Erico e sua obra, combinamos que leríamos livros diferentes, para conhecermos um pouco mais de sua produção literária e compartilharíamos nossas impressões depois. Durante a leitura fomos selecionando trechos que mais nos tocaram, seja pela poesia da narrativa, pela importância no enredo ou pela relevância pra nossa empreitada. Esses fragmentos dos romances, além de nos preparar para as entrevistas e visitas às cidades, nos aproximou ainda mais do universo da criação de Erico, foi outro elo construído entre nós e preencheu os caminhos de querenças.

No tempo passado nas estradas gaúchas sentimos calor e cansaço. Sacolejamos por um inesperado porém bem-vindo caminho de terra, tecemos utopias, nos rendemos à beleza e amplidão dos pampas, avistamos a morada de um ser fantástico, fomos arrebatados pela figura de um homem e um cavalo próximos a uma ponte. Comemos sanduíches e nos desnudamos em diálogos apaixonados.

Passados quase 10 anos ainda ouvimos Bruce Springsteen num volume bem alto, nos sentimos livres nas estradas. E trazemos dos caminhos alguns enigmas e muitas revelações.

Saiba mais sobre a Expedição Literária Caminhos Erico Verissimo

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